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Foto do escritorLeonardo Torres

Precisamos imaginar Afrodite velha

É uma manhã de segunda-feira normal. Acorda-se com a ressaca do dia anterior. O trabalho aguarda. Mas, antes, o banheiro pede urgência, como esperado. Após as necessidades básicas e o banho, você se encontra frente a frente do espelho. Espantado.


O espanto é tão grande que perde a noção se é você que olha o seu reflexo ou se é o seu reflexo que olha para você. Devido ao espanto, podemos admitir que algo te dominou, portanto, o reflexo ganhou dessa vez. Devido ao espanto, novamente, sabemos que essa palavra está ligada a phantom: fantasma.


Afrodite velha
Afrodite velha

Um fantasma chegou. Ele não é uma pessoa atrás de você ou qualquer coisa do tipo – é, na realidade, um fio prateado surgido em meio à cabeleira escura dos dias anteriores. Solitário, branco, inesperado, diferente em cor e textura de todos os outros. “É um intruso”, pensa-se. Diante do espanto, são necessárias medidas drásticas: “arranque-o e não se fala mais nisso”. Elimine e mantenha no top secret.


Outra semana se passa e mais uma vez o espanto retorna ao cotidiano matinal de segunda-feira. Outro fio prateado. E já sabemos: se continuar arrancando, a imagem evocada é a “puxando os cabelos” – uma expressão de um estado de angústia, aflição ou desespero diante de uma situação problemática ou insolúvel.


O fio voltará na semana seguinte. Não tem mais jeito. Porém, a teimosia em negar a evidência semanal prateada torna-se bélica. Visto que é uma guerra, necessita-se de instrumentos. Não somente as mãos ou a pinça, mas medidas químicas podem ser tomadas: tintura e sprays coloridos são úteis. Tudo que possa disfarçar os intrusos prateados.


A cada novo ciclo: a lua prateada. Mais fios e fios refletem o satélite. Assim como a lua, o humor oscila entre a irritação e a melancolia. A falsa autoestima pautada na estética juvenil, trabalhada na academia e nos centros estéticos, antes inabalável, começa a ruir. Fantasia-se ao sair de casa: "será que estão falando de mim? Será que notaram os intrusos?".


Essa fantasia não pode ser destacada. Quem são estes outros? “A sociedade”, pode-se responder. Uma sociedade tão padrão quanto a cabeleira escura até então. Cada fio de cabelo colorido é um fio que prende aos outros, nessa fantasia. O único que possui uma voz diferente é o branco. Mas, em meio às vozes laudas dos fios escuros, uma voz sutil e nívea pode ser encontrada. Ela é um sussurro da alma: “aceite-me”.


“Aceite-me. Eu sou o convite. Aquilo que encontrares se me aceitar és tu mesmo, pois sou a diferenciação. Sou de prata, sou sim o sinal de declínio do ouro, porém, aquele que permanece no ouro perde-se de si. Chegou o momento de revisares a ti mesmo, abandonares a falsa importância que tu seguraste tão firme desde então. Duvida-te de ti. Quem és tu se não tiveres este ofício; quem és tu se não tiveres este dinheiro ou esta dívida; quem és tu se morasses em outro lugar, com ou sem religião, com outra família ou solitariamente, com outro ou até mesmo sem o amor? O que fizeste até então, valeu para que? Pois essa te respondo: para nada. Tudo é pó e ao pó retornarás.”


Nenhuma cabeleira grisalha é a mesma. Cada fio contribui para a composição grisalha singular, uma manifestação visível do pedido de diferenciação. As tonalidades variam. As texturas se alternam entre fios lisos e sedosos, fios ondulados e volumosos, fios crespos e rebeldes. É, sim, uma diferenciação que se estampa na cabeça, literalmente. Também, é um convite à metáfora e reflexão, mesmo que os prateados fios sejam escondidos. A cabeça é um símbolo da reflexão, do pensamento, em nosso paradigma ocidental: um chamado para olhar para dentro e reconhecer algo que até então estava oculto.


O oculto não pode ser dito nesse artigo, pois, seria uma traição aos fios grisalhos. Porém, podemos refletir sobre a aceitação do pedido de diferenciação que o primeiro fio grisalho clama. Neste estágio, deve-se questionar: é possível reconhecer uma beleza que não se sintetiza à juventude estética, mas à singularidade? Se estamos falando de beleza, estamos falando de Afrodite. Isto é, imaginar Afrodite grisalha, velha?


Em artigo anterior, apontei como Afrodite não se encontra mais na estética atual. Mas, talvez, ela possa ser encontrada no momento de espanto e maravilha diante do espelho que aqui estamos contextualizando. A beleza ou Afrodite só surge se o espanto e a maravilha da impermanência forem aceitos.


Pode-se pensar numa rosa colhida como uma representação da impermanência, que atinge seu esplendor máximo quando começa a murchar, defendendo que a beleza humana se manifesta em cada fase da vida. Bobeira. Hoje as rosas estão todas iguais, assim como seus arranjos e buquês. Todos buscam as rosas mais perfeitas e imperecíveis. Ninguém mais colhe uma rosa para a sua amada – compra na máquina capitalista e manda entregar.


No fundo, há um desejo de continuar belo como no passado. Defender que agora é um novo ciclo, mais espiritual e tentar esquecer do desejo de ser belo como quando jovem é reprimir o desejo da beleza bem como aceitar que o padrão estético contemporâneo venceu. Precisamos, na realidade, imaginar Afrodite velha. Há beleza tanto literal quanto metafórica no envelhecer. Sofia, a sabedoria, não emerge se não reconhecermos que nela há beleza, Afrodite.


Por isso, é importante aprender com as árvores de Ipê. A seca, um dos sintomas do envelhecer humano, também atinge os Ipês. Porém, para eles, isso pode significar morte. Nada obstante, curiosamente, a seca é um dos fatores que desencadeiam o processo de hiperfloração. O Ipê entra em um estado de alerta, assim como o espanto diante do espelho. A árvore interpreta a falta de água como um sinal de que precisa se reproduzir para garantir a perpetuação da espécie. É nesse momento que ele concentra suas energias na produção de flores e sementes.


Se Afrodite se apresenta diante da seca nessas árvores, por que não se apresentaria também para os humanos? Se refletirmos sobre a metáfora, não são as sementes juvenis, nem flores da juventude. São flores e sementes diante da imagem do envelhecer e, consequentemente, do espanto da impermanência neste mundo. Essas flores e sementes que desabrocham em meio à aridez representam a força que persiste diante do envelhecimento. Refletir sobre essa metáfora nos leva a questionar como queremos florescer junto aos novos fios brancos que tecem a individualidade, é essencial para escolher como envelhecer e, por fim, como morrer.


Que Afrodite possa nos acompanhar nessa jornada de espanto, de sentidos e memórias. E que possamos desejar, e nos regozijar, com os tons melancólicos e terroso do outono e, após, com o brilho sutil e prateado do inverno tanto quanto nos exaltamos com os reflexos furta-cor da primavera e com o dourado imponente do verão. Afinal, é no outono e no inverno que as mais belas auroras boreais podem ser avistadas.


Leonardo Torres, analista junguiano


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1 commentaire


Malucpc
24 nov.

Uau!! Estava refletindo sobre esse exato assunto minutos antes de abrir a caixa do gmail e encontrar a notificação desse artigo. A beleza feminina é muito mais associada ao conceito de juventude e "candura" do que qualquer outra. Mulheres não devem ser infantilizadas. Queremos que a beleza singular de mulheres maduras seja reconhecida (por mais que, assim como foi dito no artigo, é algo que apenas no "oculto", no interior, que se pode descobrir).

Ótimo artigo, professor Leonardo!

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