É muito comum recorrermos à dinâmica de luz e sombra para vislumbrarmos a psique, separando-a entre consciência e inconsciente. Hoje, no entanto, gostaria de propor uma reflexão dessa dinâmica pois fiquei por demais impactado com a seguinte frase de Mariane Williamson: “é a nossa luz, não a nossa escuridão, que mais nos apavora”.
Quando li, coloquei-me a pensar. Como assim uma luz pode nos apavorar ainda mais do que o desconhecido? Em um primeiro momento, pensei que não é a sombra, mas do que dela pode surgir à luz que me amedronta. E muitas vezes, nos desesperamos ao nos depararmos frente à frente com os demônios, fantasmas e mortos que emergiram das sombras. O medo seria também, então, um sintoma daquilo que se aproxima da consciência? Talvez sim.
Como sabemos, o eu é o sujeito central da consciência e muitas vezes quer reinar sozinho. Talvez vale imaginar a consciência como uma casa iluminada por lampiões e o eu como seu mantenedor (uma paráfrase da imagem de um amigo meu, José Balestrini). Mas quando outros sujeitos põe um pé na consciência ou nessa casa, muitas vezes não são vistos como visitantes pelo eu, mas como intrusos, ladrões, assassinos. Surge então, uma batalha que vai levar aos mais diversos sintomas: depressão, ansiedade, pânico, fobias, psicossomatizações e outros.
O eu tem medo de dividir essa casa iluminada. Mas se não dividi-la essa luz torna-se demasiadamente pobre. A luz levada pelo eu ilumina somente um cômodo ou outro. Isso significa que existe mais facilidade dos “intrusos" aparecerem. Qualquer vento ou um clima gélido poderia ainda ser um grande risco a esse fogo trépido.
Como o eu não gosta de dividir, é um egoísta, os visitantes acabam por assumir o papel de intrusos e acabam querendo roubar o fogo e a luz do eu. Muitas vezes, ao longo da vida, isso acontece. Depois de agir conforme um intruso qualquer acabamos por exclamar: “eu estava fora de mim!”.
Já, um eu um pouco mais anfitrião poderia, no entanto, conhecer os visitantes e dividir com eles certa luz. Lembre-se que quem divide o fogo não fica com meio fogo, mas com duas tochas, portanto, mais iluminação.
Provavelmente, nessa recepção nem tudo será agradável e meigo. Os visitantes normalmente são sujeitos que o eu já julga como desagradáveis. Muitas vezes aparecem subitamente e vão embora deixando uma relativa bagunça.
Até quando estes visitantes vem visitar e revisitar? A verdade é que é impossível de saber. Não basta dividir o fogo ou a luz com um ou outro e acreditar que ninguém mais aparecerá. Isso gera uma autoconfiança ilusória no eu. E se ele acreditar nela, cometerá a presunção de achar que não existem mais visitantes, deixando outros que estão por vir mais furiosos. Do mesmo modo, é comum ficar deprimido por perceber que o eu não é e nunca foi aquele rei de antes.
Na medida em que o eu deixa se considerar o rei e passa a ser o anfitrião, recebendo os sujeitos estranhos e dividindo com eles o fogo e a luz, mais, na perspectiva do eu, está consolidada a sua derrota, no entanto, mais vencerá a comunhão entre todos esses sujeitos. Quem sabe um dia o eu não poderá propor uma roda de conversa entre todos, à luz do lampião, para relembrar das empreitadas da vida, das bagunças feitas, dos risos, choros e iras?
A luz dividida não gera cisões, mas unidade, ainda que dolorosamente. Por isso, C. G. Jung, fundador da psicologia analítica, afirma que nada é tão difícil quanto suportar-se a si mesmo. O si-mesmo não é o eu mas a soma do eu, da casa, dos visitantes e de onde eles vieram.
Por isso mesmo temos medo da verdadeira luz, ela significa a derrota do eu e a vivência do si-mesmo.
Leonardo Torres, analista junguiano.
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