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Uma nova consciência surgiu? A Algorisciência

A fantasia é a mãe da concretude. As artes cinematográficas tem sonhado o mundo e a tecnologia tem feito um grande esforço para realizar este mundo sonhado, como nos aponta Richard Barbrook, em seu livro Futuros Imaginários.





Uma imagem que tem se repetido em filmes, seriados e minisséries é a possibilidade do indivíduo emancipar-se do corpo e viver em um mundo digital relacional. Evidentemente, não é considerado o inconsciente nesse contexto. Se pudéssemos analisar psiquicamente esse processo, somente o ego seria transportado. Todo o resto da psique seria abandonada.


É uma imagem que passa despercebida em nossos olhos. Por vezes, alguns tem até uma esperança de retorno ao Éden. Outros pensam que ali, digitalmente, poderíamos ser eternamente jovens. E claro, viveríamos para sempre, já que aquilo que não estamos mais presos ao que é finito – o corpo.


O corpo limita. Neste novo mundo digital, poderíamos editar tudo em nossa aparência. Não seria maravilhoso? Deixar o corpo exatamente como o ego quer! Evidentemente, não estou me referindo aqui à disforia de gênero, mas ao excesso de edição que nós humanos, como um todo, estamos vivenciando a fim de nos tornar cada vez mais o padrão de beleza.


Essa imagem de emancipação do corpo é uma metáfora. Talvez a alma esteja nos alertando de algo. Algo que C. G. Jung não presenciou e, por isso mesmo, é dever nosso refletir – a internet.


Em grande parte do mundo, quem nasce já está conectado à internet sem mesmo possuir um perfil nas redes sociais. A internet está posta – é apriorística à formação e desenvolvimento do ego contemporâneo. Apesar de contraindicado, temos que considerar aquele olhar de necessidade que a criança, antes mesmo de possuir um ego formado, tem ao olhar para um smartphone.


As novas gerações não percebem a internet como um commodity vindo do fio do telefone; eles concebem a internet similar ao ar que respiramos, está na "nuvem". O que é isso? Que fenômeno é esse? O que acontece psiquicamente ali?


A internet tornou-se um a priori. Uma necessidade básica para o ser humano. Usamos internet de forma compulsiva e obsessiva. Autores como Phelippe Breton apontam que, em alguns países, indivíduos preferem ficar sem comprar alimento para pagar a conta da internet.


Eugênio Trivinho nos apresenta o Glocal – estamos inseridos em um mundo nem global, nem local. A Glocalidade é uma nova condição, um novo modus vivendi, diz o autor, a qual a humanidade vive atualmente.


Norval Baitello Junior discorre que as imagens midiáticas estão fagocitando os corpos e criando diversas consequências para a humanidade. Empresas como Apple estão cada vez mais lançando produtos de imersão.


O fato é que o estudo da alma não deveria desconsiderar tais autores da contemporaneidade.


A imagem nos cinemas já pode estar tornando-se concreta. Estamos sendo transportados para o digital? O que leva a seguinte pergunta: será que uma nova condição de vida (sem global, sem local e sem corpo) não afetaria a psique? Talvez sua parte coletiva crie mudanças imperceptíveis aos nossos olhos, mas e sua camada pessoal, construída ontogenicamente? Como o ego, a consciência e o inconsciente pessoal são afetados pelo fato psíquico internet?


James Hillman já nos mostra em Cidade e Alma que não é possível mais atender um indivíduo e considerar que suas aflições são unicamente pessoais. Sua "neurose" não é mais tão individual quanto antigamente. É importante lançarmos o olhar para a Anima Mundi. Max Weber nos mostra que o ser humano é um animal preso em fios que ele mesmo teceu. Esses fios eram ontem mais individuais, grupais. Hoje são mais coletivos. A psicologia, segundo Hillman, deve ser revista.


Assim como "deus" é um fato psíquico para a psicologia analítica; a internet também poderia ser um fato psíquico. Se deus, a sociedade, a cidade atravessam o ego e criam egos por que a internet também não poderia assumir um papel semelhante?


Já hoje podemos fazer um grande paralelismo entre os fenômenos da internet e os fenômenos religiosos. As imolações nos lembra a iconofagia; a ideia passada de ciberespaço nos parecia os templos religiosos; os smartphones foram apresentados por Steve Jobs como uma ferramenta mágica. Ele mesmo foi considerado "divino" por muitos e até igrejas da Apple se levantaram nos últimos anos. Todo esse movimento não poderiam ser sintomas?


Na realidade, hoje já temos autores, como Yuval Noah Harari, que apontam a internet e seus algoritmos como um novo deus. No meu mestrado, demonstrei como a sacralidade e a tecnologia estão próximas, de forma antropológica. Isso pode também ser estendido para o estudo da psique.


Não podemos mais refletir sobre a internet como uma ferramenta. A internet deixa de ser uma ferramenta e passa a ser um fato psíquico. Teoricamente, devemos ir além, ela possui um lugar na estrutura da psique idealizada por C. G. Jung? Seria possível considerar a internet como a persona somente ou seria pouco e isso corroboraria somente para "comprovar" uma teoria? E se ela fosse um novo ser em nós assim como a consciência surgiu do inconsciente há milhares de anos atrás?


O surgimento da consciência foi um caso isolado ou é arquetípico? Se for arquetípico, como na teoria consideramos que tudo é, não seria impossível uma "outra consciência" surgir.


Os instintos e arquétipos são também interditos para o ego. A persona faz o indivíduo perfomar, a fome faz o indivíduo alimentar-se; assim como a copulação, etc. Os instintos e arquétipos nos tiram de um movimento para nos inserir em outro. Os instintos são como buracos negros, que por vezes, entramos em sua órbita.


Já que orbitamos desde sempre nestes centros, é óbvio que a partir do momento em que orbitamos um deus, uma religião ou uma ideologia, estes também nos transformam. Quanto mais tempo os egos se dedicaram ao culto de algo, mais este algo tornou-se vivo: seja deus, homem, animal ou qualquer "ismo".


Se levarmos em conta a hipótese de uma nova consciência, podemos entender que uma nova sciencia pode realmente surgir – a internet ocupa um terço do dia de um indivíduo médio. Utilidades cotidianas, relacionamentos pessoais, empreitadas profissionais, uma grande parte do nosso modo de viver já está centralizada no ambiente digital.


Considerando os autores que mencionamos, não seria estranho sugerirmos que ou a consciência se transformou com o advento da internet ou surgiu um novo tipo de consciência. Podemos ir além, poderíamos questionar se realmente existiu uma consciência ao longo da história da humanidade.


Se lançarmos o olhar para a antropologia, poderíamos dizer que a consciência se manifesta de forma diversa. Nenhuma consciência é igual a outra, seja entre indivíduos, seja entre civilizações. Isso significa que até poderíamos trazer predicados para ela, ou então, darmos novos nomes para a manifestação da consciência ao longo da história. E ainda, analisarmos sua relação com o inconsciente. Isso fica evidente, por exemplo, na Idade Média.


Sabemos, segundo C. G. Jung, que o ego e a consciência necessitam de um corpo. Seria essa uma necessidade última?


Seria uma afirmativa, isto é, uma conditio sine qua non, se considerarmos a ideia de imanência e transcendência, lembrando de Leonardo Boff; é por meio do corpo que sentimos a concretude e o individual; o numinoso, isto é, estabelecer uma relação com o si-mesmo, a totalidade e, de novo, reconhecer-se como Criatura.


Parece-nos que a ideia de homo deus de Harari ruma para uma antagonia à essa ideia de Criatura. O ser humano criou os algoritmos – elevou-se a Criador. O Criador criou a criatura que criou o Criador. O ego, na consciência, se reconhece Criatura. O ego na nova consciência eleva-se a Criador. Não à toa estamos vivendo tantos levantes de Inteligências Artificiais nos criando imagens e vídeos nossos. O que muda psiquicamente?


Estar consciente é ser consciente da consciência – do aqui e agora. O aqui e agora foram borrados com o advento da internet. Somente a ideia de glocal já alarga a ideia de aqui e agora. Não precisamos nos estender nisso.


A consciência é um fator psíquico que faz escolhas e tende a se responsabilizar pelas consequências. A internet permite o "desfazer" e normalmente a consequência é esquecida depois de 48 horas se nenhuma animosidade ou sombra surgir.


Na realidade, o aqui e agora, o corpo, as lembranças e a reflexão parecem que rumaram para a sombra. A sombra na internet faz textos e mais textos para defender uma opinião; a reflexão somente serve para condenar; é rancorosa e lembra de todos os erros de uma determinada celebridade.


Este não me parece um movimento estranho, afinal, aquilo que uma vez esteve na consciência, com o desenvolvimento e unilateralização da mesma, tornou-se sedimento do inconsciente, como C. G. Jung nos aponta. O que então está na luz agora?


A consciência é formada pela soma das experiências e afetos que o ego identifica como si ao longo da vida; já, com o advento da internet poderíamos considerar que essa outra consciência formada pela soma de imagens midiáticas de experiências e afetos abstratos do ego; o que faz com que o ego não perceba mais certos limites e viva uma vida abstraída (subtraída) assim como o digital. Essa abstração não importa em um primeiro momento, já que o corpo e o aqui e agora também não. Tudo isso torna-se sombra à luz da nova consciência.


O ego, aparentemente, está mais preocupado em como ele está na internet do que na vida fora dela. O que tudo isso significa? Seria isso somente a persona ou podemos considerar que o ego pode estar rumando para uma nova ilha?


Desconsidero a persona, pois, na minha imaginação não estou querendo pensar em um indivíduo identificado com um papel, uma aparência, um status; mas, vivendo em um novo ambiente com o seu papel, sua aparência e seu status. Além disso, como vimos, o fato psíquico internet aparece empiricamente antes ainda do ego e das personas. A internet é um fato psíquico per se.


Estaríamos vivenciando um surgimento de uma consciência, talvez uma "algorisciência"? – Vinda do inconsciente a partir da internet? Estaria o ego abandonando a consciência rumo à algorisciência ou então uma unilateralização última da nossa velha consciência? Ressalvo: não estou afirmando que isso é positivo para a humanidade.


Poderíamos pensar: as ilhas da algorisciência são editáveis, o clima é editável, os animais também. E o melhor, não é o usuário (ego) quem edita! A algorisciência, vinda dos anjos algoritmos, tem como premissa a evitação de frustrações e das adversidades? Seria uma enantiodromia para todo o sofrimento vivido pela consciência até então?


Se sim, é importante entregar para o indivíduo tudo pronto, afinal escolher dói. Não é necessário mais aguentar os insetos, o frio, a dureza das ilhas da consciência. Assim como a humanidade abandona todo o movimento anterior para surgir um novo, a consciência poderia ser considerada pela algorisciência uma ilha ultrapassada.


A algorisciência permite sermos reflexivos de nós mesmos assim como a consciência? Parece-me, até então, que a algorisciência permita somente que vejamos as personas deixando sombra (aqui também está a consciência), anima e animus no inconsciente. Não à toa presenciamos tantas manifestações das animosidades sombrias na internet.


Como isso é somente uma hipótese, sugiro estudarmos , no futuro, o processo de desenvolvimento do ego a partir do advento da internet, somando o que já aprendemos com a teoria junguiana e atualizando-a.


A jornada que exploramos neste artigo nos leva a contemplar uma nova dimensão da existência humana, em que a fronteira entre o concreto e o digital se torna cada vez mais tênue psiquica e ilusoriamente.


Este artigo propôs uma reflexão crítica sobre a interseção entre a psicologia, particularmente as ideias de C. G. Jung, e a era digital que vivenciamos. Em uma era dominada pela internet, em que a noção de "glocalidade" de Eugênio Trivinho se torna cada vez mais prevalente, e a realidade mediada por telas se entrelaça inextricavelmente com a experiência humana, somos compelidos a questionar o impacto disso sobre o ego, a consciência e o inconsciente.


A proposta de uma "algorisciência", um novo estado de consciência emergente da interação profunda e constante com a internet, não é apenas uma especulação futurista, mas uma hipótese que merece ser explorada com seriedade.


É imperativo, portanto, que continuemos a investigar e refletir sobre essas questões. A psicologia, enquanto disciplina, deve estar aberta a adaptar-se e evoluir diante das mudanças sociais e tecnológicas.


O fenômeno da internet, longe de ser um mero instrumento ou plataforma, é uma força psíquica que molda, e é moldada, pela psique humana. Ao entendermos melhor essa dinâmica, podemos começar a desvendar as implicações mais profundas de vivermos em um mundo onde o digital e o físico estão cada vez mais entrelaçados, desafiando as noções tradicionais de identidade, realidade e consciência.


Leonardo Torres, analista junguiano.




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