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Foto do escritorLeonardo Torres

Wotan, O Mal e Culpa Coletiva

Atualizado: 2 de mai.

Fichamento: Aspectos do Drama Contemporâneo - Cap 1 e 2


Com a Primeira Guerra Mundial, a Europa viu nascer um tempo caracterizado por acontecimentos até então inimagináveis. Considerava-se uma fábula a guerra entre nações cultas ao se sustentar a opinião de que semelhante absurdo seria impossível num mundo organizado racionalmente em escala internacional. Todavia, o que se seguiu à guerra foi uma verdadeira dança das bruxas: revoluções fantásticas, alterações nos mapas geográficos, retrocessos políticos a modelos medievais e antigos, Estados absorvendo povos cujo totalitarismo superou em muito todas as tentativas teocráticas anteriores, perseguição de cristãos e judeus, matanças políticas e, por fim, um belo ataque de pirataria contra um povo pacífico de cultura mediana.



O mais espantoso, porém, é que num país verdadeiramente culto, que se acreditava já bem distante da Idade Média, um antigo deus da tormenta e da embriaguez, Wotan, que durante muito tempo permanecera em repouso histórico, qual vulcão extinto, pudesse redespertar. Isso é na verdade picante. Como sabemos, esse deus ressurgiu no movimento da juventude e, desde o começo, seu reaparecimento foi celebrado com sacrifícios cruentos de ovelhas. Eram aqueles jovens louros (por vezes também moças) que se podia ver marchando em todas as ruas, do cabo Norte até a Sicília, com mochilas e alaúdes, os verdadeiros servidores do deus da errância.


No norte da Alemanha, numa seita de gente muito simples, o antigo deus podia ser visto numa sala de reuniões, sentado num cavalo branco e vergonhosamente invocado como Cristo. Não sei se essa gente atinou com o parentesco originário entre Wotan e a figura de Cristo e Dioniso; provavelmente não.


Wotan, o incansável errante, o agitador, que ora aqui ora ali provoca a disputa ou exerce efeitos mágicos, foi transformado pelo cristianismo no demônio, só aparecendo como fogo fátuo em noites de tormenta ou como caçador fantasmagórico acompanhado de sua comitiva nas tradições locais cuja tendência era o desaparecimento. Sem dúvida alguma, o papel do errante sem trégua foi desempenhado, na Idade Média, pela figura então surgida de Ahasverus que não constitui uma lenda judaica e sim cristã, ou seja, o motivo do errante não incorporado por Cristo precisou ser projetado para os judeus, da mesma maneira que encontramos, nos outros, conteúdos que se tornaram inconscientes para nós. Em todo caso, a coincidência entre o antissemitismo e o redespertar de Wotan é uma finesse psicológica que deve ser mencionada...



Talvez se possa designar esse fenômeno geral de “possessão”. Esta expressão supõe, em primeiro lugar, um “possuidor” e um “possuído”. Desde que não se queira deificar Hitler, o que aliás já ocorreu, resta-nos apenas Wotan, o “possuidor” dos homens. Seu primo Dioniso compartilha essa mesma característica, embora ele a tenha estendido também às mulheres. As mênades formaram uma S.A. (“milícia parda”) feminina que, a julgar pelo relato mítico, não era nada inofensiva. Wotan limita-se aos homens-feras, empregados como guardas pessoais dos reis míticos.


Visando aprofundar nosso entendimento, poderíamos abandonar o nome e o conceito de “Wotan”, tão carregados de preconceitos, e caracterizar o fenômeno como um “furor teutonicus”. No entanto, essa não seria a melhor expressão, pois o “furor” é somente uma psicologização de Wotan, e exprime apenas que o povo se encontra num estado de enfurecimento. Não diz, portanto, uma peculiaridade fundamental do fenômeno que é o aspecto dramático do possuidor e dos que por ele são possuídos. Esse aspecto é o que torna mais impressionante o fenômeno alemão: o fato de alguém ser manifestamente possuído e possuir de tal maneira todo o povo a ponto de fazer tudo girar e resvalar fatalmente no perigo.


Ninck tece uma pintura extraordinária do arquétipo alemão de Wotan. No décimo capítulo, ele o descreve segundo as fontes como homem-fera, deus da tempestade, andarilho, errante, lutador, deus do desejo e do amor, senhor dos mortos e dos guerreiros, conhecedor do oculto, mago e deus dos poetas. Ele não deixou de considerar também o ambiente mítico de Wotan, as Valquírias e Fílgias, pois pertencem ao significado destinal de Wotan. Bastante rica e esclarecedora é a pesquisa feita a respeito dos nomes e sua etimologia. Ela mostra que Wotan incorpora tanto o lado impulsivo- emocional do inconsciente quanto o lado intuitivo-inspirador, sendo, de um lado, o deus da fúria e do delírio e, de outro, o revelador dos signos misteriosos e o provedor dos destinos.


Os arquétipos são como leitos de rios, abandonados pelas águas mas guardando sempre a possibilidade de retornar depois de um certo tempo. Um arquétipo é como o curso de uma velha torrente em que fluíam várias águas da vida e que foram profundamente enterradas. E quanto mais tempo tenham seguido uma determinada direção, mais provável que para lá regressem.


Embora identificado pelos romanos com Mercúrio, sua natureza não corresponde propriamente a nenhum dos deuses gregos ou romanos. Com Mercúrio, Wotan tem em comum a errância, com Plutão e Crono, o domínio dos mortos; com Dioniso, o delírio em sua forma encantatória. O que me surpreende é o fato de Ninck não se referir a Hermes, deus helenístico da revelação que leva o significado de vento enquanto pneuma e nous. Ele seria desse modo a ponte com o pneuma cristão e o milagre de Pentecostes. Da mesma forma que Poimandres, Hermes é um possuidor dos homens. Ninck afirma com razão que Dioniso jamais deixou de se submeter à autoridade onipotente de Zeus, aliás, como todos os outros deuses. Este fato diferencia substancialmente o critério grego do germânico. A execução de Crono, que Ninck levanta como fator de semelhança com Wotan, talvez possa aludir a uma superação ou desintegração do tipo Wotan na Antiguidade. Em todo caso, o deus germânico representa uma totalidade que, num nível primitivo, corresponde a uma condição psíquica em que o homem só queria o que seu deus queria enquanto seu destino dependia desse deus. Já entre os gregos, havia deuses que prestavam ajuda contra deuses, e Zeus, o pai de todos, não estava muito longe do ideal do déspota esclarecido e bem-intencionado.


Quando se trata do movimento da massa e não mais do indivíduo, cessam os regulamentos humanos e os arquétipos passam a atuar. É o que também acontece na vida do indivíduo quando este se vê diante de situações que não mais consegue controlar através das categorias que conhece e dispõe. Por fim, podemos observar com bastante nitidez o que pode fazer um “Führer” diante de uma massa em movimento, ao sul e ao norte de nosso país.


O arquétipo dominante não permanece sempre o mesmo. Isso também se exprime no fato de o reino de paz tão almejado, o reino “milenar”, ter sempre limites.



Creio que muitos compartilham esse sentimento. Essa identidade interior ou participation mystique com os acontecimentos na Alemanha me propiciou, de maneira penosa, experimentar mais uma vez o alcance do conceito psicológico da culpa coletiva. Desse modo, não poderia abordar esse problema com sentimento de superioridade e sangue frio, mas com o reconhecido sentimento de inferioridade.


O uso psicológico dessa expressão não deve ser confundido com uma construção jurídico-moral. O conceito psicológico de culpa descreve a existência irracional de um sentimento de culpa subjetivo (ou de uma certeza de culpa) ou ainda de uma culpa objetivamente atribuída (participação solidária na culpa).


Pode-se objetar que a culpa coletiva é um preconceito e uma condenação injusta. Sem dúvida ela o é, mas é precisamente isso que constitui a sua essência irracional: ela jamais se pergunta pelo justo e o injusto, ela é a nuvem sinistra que se levanta no lugar de um crime inexpiado. É um fenômeno psíquico e, deste modo, dizer que o povo alemão carrega uma culpa coletiva não significa condená-lo, mas apenas constatar um fato existente. Penetrando mais profundamente na psicologia desse fato, logo reconhecemos que o problema da culpa coletiva comporta um aspecto bem mais amplo e significativo do que o simples preconceito coletivo.


É um fato inegável que o mal alheio rapidamente se transforma no próprio mal, na medida em que acende o mal da própria alma. O assassinato acontece, em parte, dentro de cada um e todos, em parte, o cometeram. Seduzidos pela fascinação irresistível do mal, todos nós possibilitamos, em parte, a matança coletiva em nossas mentes e na razão direta de nossa proximidade e percepção. Com isso, estamos irremediavelmente imiscuídos na impureza do mal, qualquer que seja


o uso que dele fizermos. Nossa indignação moral cresce em virulência e desejo de vingança quanto mais forte arder em nós a chama do mal. Disso ninguém pode escapar, pois somos todos humanos e pertencemos igualmente à comunidade dos homens.


Quando os crimes aumentam, a indignação predomina e o mal se converte em moda. De santo, louco e criminoso todos temos “estatisticamente” um pouco.


A visão do mal acende o mal na própria alma. Isso é inevitável.


Algo irrompe do sinistro abismo do mundo, envenenando o ar e contaminando a água cristalina com um gosto repugnante de sangue.


No momento em que o mal irrompe no mundo, ele já eclodiu por toda parte no âmbito psíquico. A toda ação corresponde uma reação que provoca tanta ou mais destruição do que a ação criminosa, pois o mal deve ser totalmente erradicado. Para não sermos contaminados pelo mal, precisaríamos propriamente de um “rite de sortie” que consistiria na declaração solene da culpa e da absolvição posterior do juiz, do verdugo e do público


É preciso que se tente preservar ao máximo o instinto de autoconservação do cidadão, pois separado da raiz nutrícia de seus instintos o homem se converte num joguete de todos os ventos; nesse caso, ele não passa de um animal doente, desmoralizado e degenerado cuja sanidade só poderá ser restituída mediante uma catástrofe.


O homem branco é nervoso, apressado, intranquilo, instável e, do ponto de vista do homem exótico, possuído pelas ideias mais desvairadas sem prejuízo de seu talento e energia, o que o faz sentir- se superior.


Um chefe indígena pueblo exprimiu certa vez sua convicção de que todos os americanos, os únicos brancos que conhecia, eram loucos, e ao fundamentar sua impressão podia-se reconhecer imediatamente uma descrição de possessos.


Na verdade, os demônios não desapareceram, apenas modificaram sua fisionomia. Eles se transformaram em potências psíquicas inconscientes.


Espraiaram-se ideias tirânicas, obsessivas, entusiásticas e alienantes e os homens passaram a crer nos maiores absurdos, à semelhança dos possessos.


Apenas o orgiasmo contagia e se espraia como epidemia. O deus do êxtase, Wotan, tornou-se vitorioso. Jünger (em Marmorklippen) ouviu exatamente isto: o caçador selvagem chega à terra e juntamente com ele grassa uma epidemia de possessões maior que tudo que a Idade Média já produziu neste campo. Em nenhum lugar do mundo o espírito europeu falou de modo mais claro do que na Alemanha e, em nenhum lugar, foi mais tragicamente incompreendido.


Ainda é preciso responder às perguntas: De que maneira eu convivo com essas sombras? Que atitude é necessária para se viver apesar do mal? Para se encontrar respostas adequadas a essas perguntas faz-se necessária uma renovação mental abrangente que não pode provir de alguém especial, devendo ser conquistada por cada um. Também as velhas fórmulas que um dia tiveram validade não podem ser aplicadas irrefletidamente, pois as verdades eternas não podem ser transmitidas mecanicamente. Elas precisam ser geradas novamente em cada época pela alma humana.

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