Em tempos imemoriais, antes mesmo que as constelações fossem batizadas pelos humanos ou que o firmamento fosse tingido com o éter do anil celeste, existia um reino que permeava acima e embaixo – as vastidões do eterno, conhecido pelo nome de Aerwynn. Este domínio, sob o cetro de Théa, a deusa de incomensurável sabedoria, era um santuário de serenidade e tranquilidade.
Théa regia seu reino até a chegada de duas figuras: Fobedor, a personificação do Medo, e Sotia, a personificação da Segurança. Ambos jamais foram vistos como inimigos, até os dias de hoje. Fobedor e Sotia são gêmeos, entidades que andavam, andam e sempre andarão de mãos dadas. Onde um chega, o outro também se apresenta.
Quem pausar um pouco o seu cotidiano, pode começar a reparar que a Segurança e o Medo são irmãos que nunca saíram do ninho da mãe. De mãos dadas, esses dois aspectos do ser humano nos faz também não sair do nosso ninho, mesmo que ele seja feito de arame farpado. Sair de um casamento em que o parceiro trai, por exemplo, faz o Medo chegar e com ele vem a o conforto da Segurança de permanecer como as coisas estão. "Talvez não seja tão ruim assim", pensamos nesse contexto. Outro exemplo é sair da inércia do trabalho diário para estudar, exercitar-se, etc. O irmão Medo fala aos ouvidos "mas você terá que fazer uma prova" ou então "todos da academia vão ver como está o seu desempenho físico". Daí vem a irmã segurança para nos colocar no sofá, quentinho e confortável.
No conto, Fobedor, de olhos abissais que eram iguais as noites sem luar, começou a visitar os habitantes de Aerwynn. Perambulando e incutindo nos corações dos humanos que Sotia seria a única divindade capaz de resolver a profundidade do incognoscível, que abre os corações e apresenta o vazio do momento e a incerteza do futuro. Sem mesmo perceber que ele era o deus que imputava isso nos corações alheios. Sotia, por sua vez, vestida com a trajes confortáveis feitos de pele de animais que não podemos mais imaginar, proporcionava consolo e proteção. Lá onde Fobedor semeava a inquietação, Sotia tecia um manto de segurança, assegurando que as tribulações enfrentadas não deixassem cicatrizes.
Tudo estava em paz, assim como quando não queremos mexer no que está aparentemente funcionando em nossas vidas. A paz, neste caso, é inimiga. O equilíbrio perfeito estabelecido por Fobedor e Sofia, o Medo e a Segurança, leva-nos para fora do autoconhecimento. Tudo aquilo que está em equilíbrio está morto, pois não está em movimento, não gera desordem para gerar a ordem. Equilíbrio não é ordem, é morte. O movimento entre desordem e ordem chama-se harmonia, esta sim possui demasiado movimento.
Théa, ao perceber que nada mais mudava em seu reino, deu luz a Consiaz, cuja essência era a Confiança. Esta deusa, imputava nos corações aquilo que a própria palavra nos traz: "fiar junto de si". Consiaz fazia com que diante de Fobedor os habitantes pudessem olhar para dentro e tecer estratégias e táticas para superar o deus fobia. Consiaz questionava a necessidade de Medo e Segurança, pregando que a verdadeira liberdade dos habitantes residia em somente cultuá-la. Finalmente, poderemos sair do ninho.
Os habitantes abandonaram tanto o Medo quanto a Segurança, seguindo Consiaz em jornadas audaciosas pelo além, enquanto Fobedor estrebuchava em lágrimas, proclamando a morte dos habitantes. Desprovidos da salvaguarda de Sotia, os aventureiros foram e nunca mais retornaram ao reino de Théa. A Confiança imputada nos corações, embora libertadora, cegava os habitantes.
Ainda inocente e percebendo o que havia feito com os habitantes filhos de Théa, Consiaz pede ajuda a sua mãe e seu pai – Théa é pai e mãe de todos. "Eu nasci para eles não rumarem para a morte, mas eu os levei para lá! Me ajude!". Théa, afirma que nem todos podem seguir Consiaz no momento em que o deus os chama. Ainda disse que Consiaz errou ao esquecer-se de seus irmãos, Fobedor e Sotia. "Medo e Segurança são indispensáveis ao tecido do destino. Você ensina os habitantes a fiarem consigo mesmos, mas eu fio algo muito maior para todos nós".
Confiar somente em nós mesmos é um perigo: leva-nos às mais altas escaladas, literais e metafóricas. Faz-nos esquecer dos companheiros. Tornamo-nos egoístas. Acreditamos que não há algo maior a ser fiado no tecido da vida além de nossa existência medíocre. Nós, humanos, acabamos por acreditar que somos Consiaz, sem perceber que ela é uma divindade de pés ágeis e é de sua natureza a empreitada pelo mundo a fora, sem Medo e sem Segurança.
Consiaz, ao abraçar os conselhos de Théa, percebeu que só poderia ajudar os habitantes de Aerwynn, se seus irmãos estivessem juntos. Os habitantes não poderiam somente cultuar Consiaz ou Fobedor e Sotia, mas os três juntos. Seria, então, dever dos habitantes reconhecer em que momento qual irmão iria sobressair.
E até hoje estamos assim. Alguns buscando uma Segurança no trabalho ou no amor ou seja onde for para lidar com o Medo. Outros somente cultuando a Confiança de si, tornando-se um grande idiota. Mas, há aqueles que diante dos desafios do tecido da vida, feitos cuidadosamente por Théa, conversam com os três irmãos e refletindo sobre o fiar e percebendo que Fobedor, o Medo, pode tornar-se Prudência. Sotia, a Segurança, pode tornar-se Prisão, e Consiaz, a Confiança em si, pode inspirar a fiar e fazer parte de um tecido que jamais alcançaremos com nossas capacidades perceptivas.
Leonardo Torres, analista junguiano.
Vim conferir o texto pela sincronicidade da notificação do álbum do Thom York "Confidenza" (feito para filme homônimo) ter aparecido hoje, junto a outras faixas. Harmonia pra nós.