A Idade Média é repleta de episódios em que a loucura parece tomar conta das massas, levando a comportamentos irracionais e, muitas vezes, violentos. Na Idade Média, período frequentemente retratado como uma era de trevas e ignorância, crenças ilusórias, jargões compulsivos e superstições moldavam a visão de mundo e ditavam o comportamento das pessoas. É nesse contexto que Charles Mackay, em seu livro 'Ilusões Populares e a Loucura das Massas', elenca, historicamente, nos presenteia diversos fatos que ocorreram na Idade Média. Frequentemente retratada como uma era de trevas e ignorância, a Idade Média era permeada por crenças ilusórias, jargões compulsivos e superstições violentas que ditavam o comportamento das pessoas e moldavam sua visão de mundo.

Da crença fervorosa em alquimia, em que pessoas acreditavam na literal transmutação de metais básicos em ouro, levando-as à ruína financeira. As Cruzadas, impulsionadas por fervor religioso e promessas de riquezas, também são retratadas, cegando os participantes para os perigos e a violência. A “mania da dança”, onde multidões dançavam freneticamente até a exaustão e morte. Há também a especulação em bulbos de tulipas gerou uma bolha financeira insana, com preços exorbitantes sendo pagos por variedades raras, levando a uma crise econômica quando a bolha estourou. Não se pode esquecer da caça às bruxas na Europa, mostrando como o medo e a superstição levaram à perseguição e execução de milhares de pessoas, em grande parte mulheres, acusadas de bruxaria. Os jargões e as crenças que permeavam essa época, como a crença em demônios, feitiçaria e pactos com o diabo, que justificavam a violência e a intolerância.
Uma análise mais aprofundada desses eventos históricos, a partir da obra de Mackay, revela padrões que podem ser organizados em quatro categorias principais:
Influência de Crenças e Ideologias Extremistas e Literais: a influência de crenças e ideologias extremistas e literais era um fator preponderante na vida cotidiana. A interpretação literal de textos religiosos, por exemplo, alimentou empreitadas militares imbuídas de fervor religioso, marcadas por extrema violência e intolerância, em que milhares de pessoas foram torturadas, queimadas e mortas. Essas ações eram frequentemente legitimadas por uma profunda crise de fé, que se manifestava em conjunto com crises socioeconômicas.
Crises Socioeconômicas e espirituais: a peste bubônica, por exemplo, dizimou grande parte da população europeia, gerando um imenso sofrimento para a população. Guerras prolongadas, como a Guerra dos Cem Anos, somadas a períodos de fome severa causados por colheitas ruins, contribuíam para um clima de constante incerteza e instabilidade, levando a dúvida religiosa nas Igrejas e, consequentemente, a uma profunda crise de fé.
Delírios Coletivos: a crença em lobisomens, vampiros e santos fantásticos era amplamente difundida, levando a episódios de pânico e perseguição. Vale lembrar que a percepção da época sobre os santos era diferente da atual. Na Idade Média, os santos podiam tanto abençoar quanto amaldiçoar. Em certas regiões, acreditava-se que pessoas haviam feito pactos com o diabo, o que resultava em acusações de bruxaria e julgamentos sumários. Esses delírios coletivos eram alimentados por boatos, lendas urbanas e, por vezes, por líderes religiosos que os utilizavam para reforçar seu poder e controle sobre a população.
Comportamentos Extáticos de Massa: a Dança de São Vito, por exemplo, era um fenômeno no qual multidões dançavam descontroladamente pelas ruas, às vezes por dias a fio, até a exaustão completa. Esses eventos, muitas vezes interpretados como possessões demoníacas ou punições divinas, refletiam a tensão e a ansiedade subjacentes na sociedade medieval, que encontravam uma forma de expressão coletiva e descontrolada
É importante lembrar que essas categorias não são excludentes, e os eventos históricos podem se encaixar em múltiplas delas. A categorização serve como ferramenta para analisar e compreender as diferentes facetas desses eventos e como se conectam entre si.
As categorias estabelecidas não operam de forma isolada, mas interagem e se retroalimentam em um ciclo complexo. As crises socioeconômicas e espirituais, por exemplo, criavam um ambiente propício para a proliferação de crenças e ideologias extremistas e literais, que ofereciam explicações simplistas e soluções ilusórias para o sofrimento e a incerteza. Essas crenças, por sua vez, frequentemente levavam a delírios coletivos, que justificavam a perseguição a grupos específicos e a eclosão de comportamentos extáticos de massa, que serviam como uma forma de catarse coletiva diante da tensão social. Esses comportamentos, contudo, reforçavam ainda mais o clima de instabilidade e medo, alimentando novas crises e intensificando a busca por bodes expiatórios, fechando o ciclo e demonstrando a interdependência dinâmica entre as categorias.
Embora separados por séculos e por avanços tecnológicos, parece que estamos cada vez mais nos aproximando da Idade Média. Inaugurando assim uma Idade Mídia, altamente tecnologizante, porém, essencialmente trevosa. Sobre o termo “Idade Mídia”, melhor seria se fosse usado “Idade Media”, o que, curiosamente, é muito semelhante à Idade Média. A preferência pelo termo em inglês "media" entre alguns autores críticos da mídia se deve a uma série de fatores: "Media" permite uma leitura crítica, abrangendo um conjunto mais amplo de meios de comunicação e evitando a conotação popular e negativa frequentemente associada à "mídia" em português. Além disso, o uso de "media" destaca a amplificação da indústria da comunicação, com suas tendências para a homogeneização cultural, o imperialismo, o consumismo e o neoliberalismo sem precedentes.
Retomando a ideia de literalidade é estar nas trevas, vale lembrar que na medida em que nos o ser humano torna-se literalizado e extremista, torna-se também dominado pela Sombra pessoal e coletiva, pois escolhe uma única linha perceptiva e refletiva sobre determinado fato, não abrindo sua consciência para a multiplicidade furta-cor daquilo que o envolve os fatos. C. G. Jung aponta que é precisamente o olhar furta-cor, simbólico, que garantirá uma consciência mais ampla, podendo “ser lido de diversas maneiras por indivíduos diferentes”. (C. G. Jung, Cartas, v.3, p. 11).
Neste ponto, C. G. Jung traz um diagnóstico da atualidade: “não temos vida simbólica, mas temos necessidade premente dela. Somente a vida simbólica pode expressar a necessidade da alma – a necessidade diária da alma, bem entendido. E pelo fato de as pessoas não terem isso, não conseguem sair dessa roda viva, dessa vida assustadora, maçante e banal onde são ‘nada mais do que’. A vida é racional demais, não há existência simbólica em que sou outra coisa, em que desempenho um papel, o meu papel, como um ator no drama divino da vida. (JUNG, A vida simbólica: escritos diversos, p. 273).
Este diagnóstico trazido por Jung pode ser lido na atualidade, porém, também no contexto da Idade Média, ambos contextos sofrem daquilo que o autor sempre trouxe em suas obras: “a perda da alma”. Perder a alma é também viver de literalidades, com suas unilateralizações e verdades últimas. Viver de literalidades é viver desnutrido, comendo aquilo que não mata a fome e beber daquilo que não mata a sede. E já sabemos, sede e fome assim, gera agressividade. Perder a alma é um dos maiores perigos que a humanidade pode enfrentar – isso já foi ensinado pelos povos primevos, mas parece que poucos escutaram.
Na atualidade, a influência de crenças e ideologias extremistas e literais continua a ser um fator significativo na dinâmica social e política. A polarização ideológica, intensificada pelas redes sociais, cria bolhas de informação dm que visões de mundo rígidas e dogmáticas são constantemente reforçadas. Grupos extremistas, sejam eles religiosos, políticos ou identitários, utilizam narrativas simplistas e maniqueístas para mobilizar seguidores, frequentemente recorrendo à desinformação e à demonização do "outro" – as fake news. Por exemplo, os movimentos "incel" (celibatários involuntários) e redpill, são exemplos de um pensamento misógino que culpa e esteriotipiza as mulheres, o que pode levar a atos de violência. Da mesma forma, o crescimento de movimentos nacionalistas e populistas de extrema-direita em várias partes do mundo, alimentados por um discurso anti-imigração e pela nostalgia de um passado idealizado, demonstra a força dessas ideologias extremistas. Elas nunca deixaram de existir, estavam incubadas, prestes a eclodir. Essa dinâmica dificulta o diálogo, evidencia o monólogo, impede a construção de consensos e é o berço da hostilidade, criando um ambiente propício ao contágio de ideias extremistas e comportamentos intolerantes, como ataques a minorias e a instituições democráticas. "Aqueles que têm a verdadeira capacidade de ouvir compreendem, e os que não a têm não ouvirão." (C.G. JUNG, 18/1, § 291).
No tocante às crises socioeconômicas e espirituais não precisamos discorrer muito: a pandemia do COVID-19, a crise climática, as desigualdades econômicas crescentes, os conflitos geopolíticos, como a guerra na Ucrânia, e a rápida transformação tecnológica, incluindo o avanço da inteligência artificial e a automação, contribuem para um clima de ansiedade e desorientação, seja na pobreza material do mundo, seja na pobreza espiritual daqueles estão imersos até o último fio de cabelo no mundo corporativo. Muitos buscam refúgio em certezas últimas, sejam elas religiosas, ideológicas ou conspiratórias, como uma forma de lidar com a complexidade e a imprevisibilidade do mundo atual, porém, não convence. O aumento de diagnósticos psiquiátricos é um reflexo dessa crise de sentido, e também uma busca por uma crença literal. Essa busca por sentido, no latu sensu, pode tornar os indivíduos mais suscetíveis à influência de ideias extremistas, levando à adesão a movimentos extremistas ou a comportamentos autodestrutivos.
A era digital testemunha a proliferação de novos tipos de delírios coletivos, e marca a retomada dos seres fantásticos. Estes, antes relegados ao imaginário popular, agora ressurgem na forma de vídeos e fotos virais de supostos alienígenas, monstros, espíritos e outros. Teorias da conspiração, como QAnon, que afirma a existência de uma cabala secreta composta por satanistas, pedófilos e canibais, que governam o mundo; e movimentos antivacina, que espalham desinformação sobre a segurança e a eficácia das vacinas, ganham força no mundo virtual, criando perspectivas de realidade paralelas baseadas em informações falsas e interpretações distorcidas da realidade. A crença no terraplanismo, por mais absurda que pareça, é outro exemplo de delírio coletivo que persiste na era da informação.
Esses delírios coletivos disseminados digitalmente levam a movimentos coletivos concretos, e podem ter consequências sérias, levando à radicalização, à erosão da confiança nas instituições e até mesmo à violência, como visto na invasão ao Capitólio dos EUA em 6 de janeiro de 2021 e no 8 de janeiro na invasão das sedes dos Três Poderes do Brasil, ambos motivados, em grande parte, por teorias da conspiração sobre fraude eleitoral. Não somente os concretos, mas hoje presenciamos linchamentos virtuais, em que usuários são atacados e humilhados publicamente por outros usuários nas redes sociais. Ondas de ódio direcionadas a indivíduos ou grupos são frequentes. Desafios virais perigosos, como o "Tide Pod Challenge" (desafio de comer cápsulas de detergente) ou o "Momo Challenge" (suposto desafio de automutilação), se espalham rapidamente, especialmente entre os jovens, demonstrando a suscetibilidade à influência do grupo no ambiente online. Sobre isso possuo um artigo científico publicado na Fiocruz (Saiba mais clicando aqui).
A arquitetura das plataformas, que muitas vezes privilegia o engajamento acima de tudo, contribuindo para a viralização de conteúdos sensacionalistas e emocionalmente carregados, amplifica essas dinâmicas, criando um ambiente em que a racionalidade é frequentemente suplantada pela reatividade e pela pressão do grupo, levando a uma gama de comportamentos que vão da impulsividade e da agressividade online à autodestruição, como nos casos extremos de suicídios ligados a desafios virais.
Ao analisarmos as dinâmicas sociais da Idade Média e compará-las com a atualidade, percebemos que, em certos aspectos, estamos nos aproximando de um cenário paradoxalmente similar, inaugurando o que podemos chamar de 'Idade Mídia'. Assim como a Idade Média foi marcada por crises, crenças extremistas, delírios coletivos e comportamentos de massa impulsionados pelo contágio psíquico, a era digital, com sua infodemia, polarização e viralização de comportamentos, replica essas dinâmicas em uma escala e velocidade antes inimagináveis.
A diferença crucial, e imensamente perigosa, reside no fato de que agora somos tecnologicamente abastados, detentores de um poder de destruição sem precedentes. Na Idade Média, a loucura das massas podia levar a perseguições e conflitos localizados; na Idade Mídia, o contágio psíquico, amplificado pelas redes sociais e potencializado por um arsenal tecnológico capaz de aniquilar a vida no planeta, representa uma ameaça existencial à humanidade. Um indivíduo, movido por delírios ou ideologias extremistas disseminadas e reforçadas online, pode, literalmente, apertar um botão e desencadear eventos com potencial de extinguir a raça humana.
Portanto, compreender as lições da Idade Média refleti-las à complexidade da Idade Mídia é fundamental para a nossa sobrevivência, exigindo um esforço coletivo para promover o pensamento crítico, a responsabilidade digital e a salvaguarda da sanidade em um mundo cada vez mais interconectado e perigosamente poderoso.
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Leonardo Torres, analista junguiano.
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